Via Blog: As relações entre trabalho infantil e trabalho escravo

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Por Bernardo Vianna

Entre 1995 e 2011, mais de 43 mil pessoas foram libertas de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil. De acordo com a pesquisa Perfil dos Principais Atores Envolvidos no Trabalho Escravo Rural no Brasil, produzida pela Organização Internacional do Trabalho – OIT, “a escravidão contemporânea no país é precedida pelo trabalho infantil”.

Realizada entre 2006 e 2007, a pesquisa, baseada em entrevistas qualitativas, ouviu 121 trabalhadores em 10 fazendas dos Estados do Pará, do Mato Grosso, da Bahia e de Goiás. “Praticamente todos os entrevistados na pesquisa de campo (92,6%) iniciaram sua vida profissional antes dos 16 anos. A idade média em que começaram a trabalhar é de 11,4 anos, sendo que aproximadamente 40% iniciaram antes desta idade”, revela o texto divulgado pela OIT. Em 69% dos casos, o trabalho infantil era realizado em âmbito familiar. Dos que já trabalhavam para um empregador, 10% o fazia junto com a família, enquanto 20% trabalhava diretamente para um patrão. Entre os que começaram a trabalhar com menos de 11 anos, 17% eram empregados fora de casa.

Além dos trabalhadores, a pesquisa também entrevistou os chamados “gatos”, aliciadores que atuam em comunidades vulneráveis. “Com exceção de um caso, os gatos entrevistados, da mesma forma que a maioria dos trabalhadores resgatados, foram vítimas do trabalho infantil. Apenas um deles começou a trabalhar aos 16 anos”, revela a pesquisa.

Para Natália Suzuki, coordenadora do Escravo, Nem Pensar!, projeto da Repórter Brasil, a relação entre trabalho infantil e trabalho escravo tem como pano de fundo, em primeiro lugar, a vulnerabilidade socioeconômica das crianças e adolescentes e de suas famílias. “A questão socioeconômica é preponderante para que esse tipo de situação acabe se formando. A família não tem condições de dar segurança econômica e social para a criança, que acaba também indo para a frente de trabalho”, disse.

Além disso, Natália aponta uma relação de “naturalização da exploração”, que leva a pessoa submetida ao trabalho infantil a tornar-se mais vulnerável à situação de trabalho escravo contemporâneo. “A pessoa vai crescendo sempre envolvida em uma situação de trabalho em que há uma relação de exploração. As experiências de vida desse trabalhador, desde muito cedo, são em torno dessa exploração. Então, a pessoa vai – e o termo é justamente esse – se acostumando com essa condição. Você ouve muitos relatos dos trabalhadores como ‘eu trabalho desde os meus onze anos no corte de cana’, ‘eu trabalho desde os meus onze anos em carvoaria’. A pessoa cresce e as experiências de exploração vão acompanhando o desenvolvimento dela. Ela naturaliza essa situação de exploração. E, assim, ela aceita desde ganhar pouco até não ganhar nada e não gozar de direitos”, explicou.

Outro fator de vulnerabilidade ao trabalho infantil e ao trabalho escravo é a educação e o acesso à informação. “A escola, a comunidade escolar, também tem um papel muito importante na difusão de direitos. Sem a educação formal ou mesmo informal, a pessoa tem tolhida a percepção de que tem direitos, de que não pode ser explorada, de que ela tem a lei do lado dela enquanto trabalhadora”, disse Natália. Segundo ela, a educação tem o papel de formar tecnicamente o trabalhador  – e, principalmente, de formá-lo a partir de uma perspectiva de cidadania –, de difundir informações sobre direitos e de fazer com que as pessoas saiam da condição de naturalização da exploração.

De acordo com Natália, por esse motivo a atuação do Escravo, Nem Pensar!  é voltada para a prevenção do trabalho escravo por meio da educação, com ações para educadores da rede pública, tanto estadual como municipal, e para lideranças comunitárias. “Isso porque tanto as lideranças quanto os educadores têm um potencial multiplicador muito grande. Se um professor tem uma classe de 50 alunos, esses 50 alunos, por sua vez, vão ser também multiplicadores, vão levar informações para os pais, para as famílias, para os vizinhos”, explicou.

Ela conta o caso de uma aluna que atuou como multiplicadora. “A aluna teve contato com uma professora que participou das nossas formações e falou: ‘nossa professora, mas meu pai está indo trabalhar em outro Estado, pode ser um caso de trabalho escravo?’ O pai foi até a escola falar com a professora, contou que a filha o havia alertado, mas que o trabalho estava todo correto. Ele havia perguntado sobre o lugar e a carteira de trabalho estava ok. Isso foi um caso em que o familiar estava bem informado, mas poderia não ser, e a aluna teria evitado que o pai tivesse caído em uma situação de aliciamento”, contou Natália.

As ações do Escravo, Nem Pensar! pretendem fazer com que as informações e o conhecimento dos direitos possam levar à desnaturalização de uma situação existente há muitas décadas ou mesmo séculos. “A ideia é que o tema caia na boca do povo, deixe de ser um tabu e que a própria comunidade possa, de forma autônoma, se mobilizar e se colocar contra isso. Uma comunidade informada, que conhece seus direitos, que sabe que tipo de trabalho pode realizar, conhece os direitos que ela deve e pode gozar. Essa é uma comunidade que não aceita facilmente esse tipo de exploração”, completou Natália.

Bernardo Vianna / VIA blog